"A excisão, como o cinto de castidade, é o medo que o homem tem da mulher" (Entrevista a Khady Koita, activista)
"Três milhões de meninas são excisadas a cada ano. Na chamada África Negra, mas também na Indonésia, no Egipto e até na Europa. Há entre 130 e 150 milhões de mulheres no mundo a quem o clitóris foi cortado e esta senegalesa muçulmana a viver na Bélgica é uma delas. Em Lisboa para promover o seu livro e participar num seminário, fala deste crime e de como combatê-lo.Conta no seu livro como foi excisada, aos sete anos, "de surpresa": o clitóris "serrado" a sangue frio com uma lâmina velha enquanto três mulheres a seguravam, a dor, o sangue, o silêncio dos adultos.
Quando é que alguém lhe explicou o que tinha acontecido e porquê?
Nunca. Ninguém me explicou porque, suponho, quem faz isso também não sabe porque o faz. E eu também não fiz perguntas. Mas quando começamos a investigar, quando se lê sobre isso e se fala com os "velhos", temos várias respostas: faz-se para que a rapariga possa chegar virgem ao casamento, para que a mulher seja fiel ao marido; outros dizem que é preciso tirar "aquilo" porque se o marido lhe tocar morre, ou então é o bebé ao nascer que pode morrer... A maioria dir-lhe-á que é feito para agradar ao marido. Em nome da honra e dignidade do homem. Para que a mulher não seja demasiado gulosa por sexo...
A origem da prática está identificada? É costume associá-la ao islamismo e a África.
Sabe-se que já no tempo dos faraós se fazia a infibulação, que é a forma de excisão mais brutal, em que se corta tudo e se cose a vagina à mulher - foram encontradas múmias assim. Aliás no Egipto, ainda hoje, 97% das mulheres são excisadas. Em África faz-se no Iémen, no Djbuti, na Eritreia, na Somália. Mas faz-se também na Indonésia e no Curdistão iraquiano - não é uma prática só africana. E não é feita só pelos muçulmanos. Também os cristãos e os animistas a praticam. Não há uma religião específica dos que a fazem nem textos religiosos - não está no Corão nem na Bíblia - a preconizá-la. Mas como as mulheres de um modo geral não sabiam ler, disseram- -lhes que era um preceito religioso, e elas acreditaram que tinha de ser feito. Sobretudo porque foram educadas na ideia de que se não fossem excisadas não casavam, e se não casassem, não existiam. Por isso, a luta contra a excisão passa também por alfabetizar as mulheres. Desde que possam ler e escrever, começam a reflectir.
Mas se alguém acredita num deus que teria feito tudo o que existe, e portanto as mulheres tal como nascem, como defender que teria criado todas as mulheres "com defeito"?
Claro: se Deus fez as mulheres com clitóris, é porque acha que faz falta. É por isso que digo aos homens: "São vocês que instigam isto; é uma ideia vossa". É como o cinto de castidade que foi inventado na Europa, como quando os médicos europeus queimavam o clitóris das raparigas para, supostamente, lhes curar a histeria. O propósito é o mesmo: controlar a sexualidade da mulher. Vem do medo que os homens têm das mulheres .
Quando é que começou a questionar-se sobre isso?
Já adulta. Bastante tempo depois de ir viver para França.
Escreve que as relações sexuais eram penosas e dolorosas com o seu primeiro marido. É possível ter prazer sendo excisada?
Em todo o lado - talvez à excepção da Europa actual - espera-se que o homem tenha prazer no sexo, mas a mulher não, e menos ainda quando casada contra vontade, como no meu caso. Eu nem sequer participava no acto. Quanto à dor, depende da forma como se foi excisada. Umas mulheres têm-na, outras não. Mas mesmo sem clitóris é possível ter prazer sexual - depende do parceiro. E hoje em dia há médicos que reconstroem o clitóris. Resulta em alguns casos.
Fala também de problemas no parto devido à mutilação.
Aquela zona está cicatrizada, perdeu a elasticidade, o que implica que as mulheres fiquem todas rasgadas e tenham dores horríveis. Mas nos primeiros partos eu não sabia que isso se devia à excisão, ninguém me disse "você foi mutilada e vai ter este e aquele problema". Nenhum dos médicos que me seguiu mencionou sequer o assunto. Isto em França! Tinha 15 anos quando dei à luz pela primeira vez e a médica que me viu não me fez uma única observação sobre a cicatriz que viu no lugar do clitóris. Só depois da morte de três meninas, em França, nos anos 80, é que isso começou a mudar. A mais mediatizada foi a de uma bebé do Mali, de três meses, em 1982. Na sequência disso começou a haver formação nessa área entre os médicos e o pessoal da assistência social.
Três das suas filhas foram excisadas em França, nos anos setenta, por uma amiga sua, que nem sequer lhe pediu permissão. Mas escreve que se ela tivesse perguntado, teria assentido...
Nessa época, o meu espírito não estava preparado para criticar, ou mesmo para questionar a prática. Nunca me tinha perguntado se estava bem ou mal. Era normal e era preciso fazê-lo. Foi muito mais tarde, quando comecei a envolver-me, como intérprete, na luta contra a violência sobre as mulheres que conheci, nos hospitais, uma associação que combate a excisão e da qual fazem parte muitas médicas, que me explicaram as consequências nefastas da excisão. Como vê, hoje, a atitude dos médicos que se calaram?É o relativismo cultural, aquela ideia "É a cultura deles, não temos nada a ver com isso". Mas há cultura e cultura! A mutilação sexual feminina tem de ser vista no contexto dos direitos humanos. E aí não há cores nem culturas. Não se pode fazer discriminação em termos de direitos humanos, dizer que são só para alguns. Mas são também as comunidades imigrantes que dizem: "vivemos aqui mas não queremos ser como vocês, não queremos adoptar os vossos valores". E aí há um conflito, como no caso da interdição do véu muçulmano nas escolas públicas francesas. Eu sou muçulmana e não uso véu. No meu país não se usa. E acho que se deve respeitar o direito da escola. Se são essas as regras da escola laica, se eu a frequento devo respeitá-las. Tal como, se estou num país, tenho de respeitar os seus valores, adaptar-me. Claro que há conflitos. Mas penso que nos países em que os imigrantes não vivem todos ao molho, em gueto, as coisas funcionam melhor.
Que devem os países europeus fazer?
Não é essencial fazer leis específicas contra a excisão: creio que em nenhum lugar da Europa é permitido mutilar qualquer parte do corpo. O que é preciso é ter atenção a essa realidade. Por exemplo, em França, todas as crianças dos zero aos seis anos são examinadas, incluindo o sexo, nas consultas pediátricas, e tudo é anotado na ficha respectiva. E explica-se à família tudo o que há a explicar sobre a excisão em termos de saúde, sublinhando que é uma prática interdita, ilegal, e que se a criança aparecer excisada o médico será obrigado a comunicar o facto ao ministério público. Em França há mais de 30 processos por esse motivo. E na Suécia houve um processo contra um pai que fez excisar a filha de 13 anos na Somália. "
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